PRÓLOGO
Certo dia, o arcanjo Uziel, cansado daquela espera infindável, resolveu galgar o monte Tsafon e afrontar seu irmão. Armou-se de sua espada de fogo, vestiu uma armadura dourada e tomou a longa escadaria de mármore que levava à construção de pedra no topo do morro. Ao fim dos degraus, o Santuário do Alvorecer aparecia meio oculto pelas nuvens geladas, um aposento imponente, erguido por largas colunas redondas. Uma forte luz azulada coruscava em seu interior, um brilho que o arcanjo acreditava ser as emanações do próprio Deus Yahweh.
Mesmo através de seu elmo polido, que completava o conjunto da bela couraça, o rosto de
Mas o caminho ao santuário não seria facilmente vencido. Miguel, o Príncipe dos Anjos, irmão direto de Uziel, guardava o trono divino, e não estava disposto a permitir seu ingresso. Sozinho,
ele bloqueava a passagem, brandindo sua espada sagrada, a insuperável Chama da Morte. Envergava uma armadura completa, prateada como os raios da lua, e adornada por detalhes dourados no peito, que formavam desenhos complexos no metal espelhado. O capacete, de crista vermelha e queixada pontuda, fora posto de lado, deixando aparentes as feições masculinas, a barba por fazer, e o rosto cheio de cicatrizes horríveis, adquiridas nas Batalhas Primevas, um confronto ancestral, sucedido antes mesmo da criação do universo.
Miguel era o mais forte dos cinco arcanjos, o primogênito, o herdeiro do Criador. Seu cabelo,
negro e comprido, era cortado por uma mecha alva que corria à nuca, e os fios estavam presos em um rabo-de-cavalo pouco alinhado. Se avistado por olhos humanos, poucos o reconheceriam como uma entidade celeste, não fossem as asas branquíssimas, afiadas como navalhas nas pontas.
O vento ameno da aurora agitou o cabelo do príncipe, e soou com apito aos ouvidos de Uziel.
O visitante estacou a dez metros do guardião, na parte mais baixa da escadaria. Silenciosos, os dois Gigantes se encararam – Miguel, forte e confiante; Uziel, indignado e decidido. O invasor levantou sua espada em posição de defesa, segurando a arma com ambas as mãos.
— Saia de meu caminho, Miguel. Estou reivindicando o direito de visitar o nosso Pai Yahweh,
em seu leito de repouso. É meu direito como arcanjo e descendente do Criador.
Por um momento, o príncipe nada disse. Em seguida, desceu um degrau.
— Você não vai a lugar algum, caro irmão. Minha paciência esgotou-se. Estou farto de sua
insolência. Eu sou o Príncipe dos Anjos, e isso significa que eu sou o líder dos arcanjos também. A
minha palavra é a lei – determinou – Yahweh está dormindo, como todos sabemos. E Ele não pode ser perturbado. Eu estou aqui para defendê-Lo, e não será você ou qualquer outro que destituir-meá de minha função principal.
Uziel pareceu ainda mais irritado.
— E como saberei que Ele está mesmo aí dentro, Miguel? Você nos diz o mesmo há milênios,
insistindo que, um dia, o Criador despertará para punir os injustos. Pois eu digo que este dia chegou.
A podridão tomou conta do mundo. Já é hora de sabermos se o que fala é correto.
— Atreve-se a questionar os meus comandos? Eu sou o seu irmão mais velho! Não duvide de
seu comandante.
— Veja aonde você nos levou, e pergunte a si mesmo se é realmente algum tipo de líder.
Gabriel arrastou metade dos nossos anjos para uma guerra civil contra nós, e Rafael nos abandonou, caindo em desgraça. Se você se opuser a mim, qual o outro arcanjo que terá ao seu lado? Lúcifer? – ironizou, evocando o nome do maior de todos os inimigos do Céu: Lúcifer, o Arcanjo Sombrio, expulso pelo próprio Miguel do Paraíso junto com sua horda nefasta.
O Príncipe dos Anjos lançou ao invasor um olhar de desdém, ao mesmo tempo em que levantava
sua espada fulgente.
— Eu não preciso de você, Uziel. Não preciso de ninguém.
Então, o guardião empunhou sua arma, e a moveu para o ataque. Suas chamas cresceram, e a
luz do fogo sagrado refletiu nos olhos castanhos do príncipe. Uziel sentiu vontade de fugir frente à
majestade do inimigo, mas sua pujança o motivou ao combate.
— Então é verdade, não é? É verdade o que Gabriel disse aos seus anjos... – Mas antes que
Uziel terminasse, Miguel alçou vôo, abriu suas asas, e desceu para ferir o irmão com um golpe
violento de espada. Ofuscado pelo brilho do sol, o visitante quase não se esquivou, mas conseguiu
rolar para o lado no instante preciso. Um estrondo titânico abalou a montanha, e a lâmina flamejante tocou a escadaria de mármore, abrindo uma fenda larga no solo. O invasor teria caído pela encosta do morro, não tivesse adejado em reflexo. Ascendeu às alturas, mas em seguida mergulhou, aterrissando em um sítio acima do guardião, muito perto da passagem ao santuário. Dando as costas ao perigo, disparou para dentro do templo, subestimando a potência do algoz.
Mesmo entendendo que jamais venceria o impiedoso vigia, Uziel continuou sua trilha. Queria
entrar no Santuário do Alvorecer e vislumbrar a face do Onipotente, só mais uma vez, nem que isso custasse sua vida. Se o Altíssimo estivesse realmente adormecido, ele teria obtido a resposta que procurava – a de que a sua luta ao lado do arcanjo Miguel tinha sido legitima. Mas e se nada encontrasse?
E se Yahweh não estivesse deitado em Tsafon? Essa hipótese o apavorava sobremaneira, mas ainda assim pereceria feliz, sabendo que desafiara seu tirânico irmão, mesmo que num derradeiro momento.
Teria, então, se redimido de todas as matanças, de todas as catástrofes que promovera, de todos os cataclismos que comandara.
Correndo e voando, ele pulou para o interior do edifício, venceu as colunas e ultrapassou o
umbral de entrada.
Uma luz intensa confundiu seus sentidos, mas logo a vista se adaptou à claridade. No centro
do grande aposento, surgiu um pedestal trabalhado, e sobre ele descansava um livro grosso, de
aparência antiga, escrito por dentro e por fora. Aquele era o Livro da Vida, um magnífico artefato
deixado ao Príncipe dos Anjos pelo próprio Deus Yahweh, e que relatava, em detalhes, toda a história do Sétimo Dia, desde a criação do homem até o crepúsculo dos tempos. Estava marcado com o código secreto dos Malakim, um idioma anterior à aurora do mundo. Miguel nunca deixava que qualquer um se aproximasse do tomo, e sua obsessão para com o objeto chegava a ser psicótica.
Quando percebeu o que se passava, Uziel sentiu as costas rasgarem em um corte abrasado. A
dor do fogo queimou suas asas, e o sangue escorreu pelo ferimento. Como um raio certeiro, a espada flamejante do furioso Miguel dilacerou suas costas, lançando o invasor ao estado letal. Atordoado, desabou contra o chão, largando o sabre e se esticando à espera da morte.
O guardião pisoteou o busto do visitante, esmagando o metal da armadura dourada. Então,
apontou sua lâmina ao rosto do irmão, em prelúdio ao choque final.
— Miguel, você nos traiu! – protestou o ferido, cuspindo um refluxo de sangue – Você traiu
a confiança dos arcanjos e de todos os celestiais.
— Eu não traí ninguém, Uziel. Foi você quem traiu a si próprio.
— Onde está Deus, Miguel? Onde está o nosso Pai Luminoso?
Às portas do desfalecimento, Uziel ainda resistia, procurando resposta à sua busca desesperada.
Não distinguira sinais do Altíssimo no templo de mármore, só os contornos de um livro envelhecido.
O que teria acontecido ao Criador?
— O Onipotente está aqui mesmo, Uziel. Será que não percebe? Ele está aqui, no Santuário
do Alvorecer!
Uziel maneou a cabeça, convencido da insanidade do irmão.
— Yahweh está morto, é isso! Ele morreu ao fim do Sexto Dia! Não está apenas adormecido
como você havia contado. Você nos enganou por todos estes anos, Príncipe Celeste – acusou – Eu me sinto envergonhado por ter acatado as suas ordens, mas estou feliz por, alfim, ter alcançado a verdade.
Desta feita, Uziel acalmou-se. A vida o estava deixando, mas ele havia cumprido a sua missão.
Agora, sua essência vital poderia se dissipar finalmente, e regressar ao ventre do Infinito.
Pronto à execução, Miguel deteve sua espada por mais um segundo.
— Perdeu seu juízo, pobre irmão. Se preferisse esperar só mais um pouco, não estaria agora
estendido neste piso gelado. A Roda do Tempo não tardará a anunciar o Apocalipse. Mas não é sua culpa. Nada você poderia ter feito para evitar o destino. Assim está escrito – completou, fatalista.
Então, o príncipe levantou sua lâmina, e Uziel aguardou a sentença.
— Não me tome por louco – acrescentou o arcanjo Miguel, em inesperado discurso – Antes
que morra, quero que saiba que eu só digo a verdade, e faço tudo pelo bem da Criação. Deus está
adormecido, e se você não o encontrou quando entrou nesta sala – pausou e em seguida atacou com a espada, perfurando o estomago do moribundo – é porque não teve a dignidade de olhar para trás.
Quando a arma encravou, o invasor se contorceu em espasmos de dor. Miguel trespassara seu
peito, a parte mais sensível da anatomia angélica, onde está concentrada toda a essência celeste, toda a energia sagrada, todo o poder da aura pulsante.
Com uma mão, o príncipe despedaçou a couraça, e com a outra arrancou o coração do irmão.
Uma luminosidade mística envolveu o cadáver, e o corpo se dispersou em vibrações cintilantes. E esse foi o fim do arcanjo Uziel, patrono da casta dos Querubins.
Vitorioso, Miguel se aproximou do pedestal, onde repousava o livro fechado. Deslizou os
dedos sobre as inscrições, e sublinhou com os olhos os caracteres marcados. Virou-se para trás, para a nave do templo, agora vazia. Então, regressou a atenção ao tomo sagrado. Com um misto de seriedade e loucura, o arcanjo falou em sussurro:
— Concordo com você em um ponto, irmão: chegou o dia de Deus despertar de seu sono.
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